Por Fatima de Kwant
Holanda, 29 de janeiro, 2018
“Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que não entendam a linguagem um do outro.”
Jeová – A Torre de Babel
No ano de 2011, quando eu comecei a voluntariar pela conscientização do autismo a nível internacional, não imaginava o peso de ser um “autism advocate”. Para mim, meu trabalho (sem salário e sem prestígio) era meu modo idealista de fornecer informações para quem quisesse ler ou ouvir sobre o Espectro do Autismo, em qualquer lugar do mundo. Tendo criado uma criança autista, estudado autismo e trazido meu filho do lado mais severo do Espectro para o lado mais leve, achava que era meu dever contar ao mundo o que eu havia feito. Através do ativismo, eu havia encontrado meu modo de agradecer ao universo as bençãos recebidas.
Eu era ingênua, super entusiasmada, crédula na boa vontade alheia, e achava que todos pensavam e agiam como eu – por paixão e compromisso com a causa do autismo. Também julgava outros autistas por meu próprio filho, tão educado, gentil e com uma dose grande de empatia pelos outros seres humanos – autistas ou não. Com o passar do tempo, percebi que nem tudo era o que parecia. Observei que não se fazem mais ativistas como antigamente. Não é só o autismo que parece importar, mas interesses variados que vão além da causa defendida. Também conheci pessoas autistas, adultas, que me chocaram pela raiva que têm dos neurotípicos (pessoas sem autismo) e o radicalismo com o qual representam a si mesmos e outras pessoas dentro do Espectro. Eu pensava que os autistas eram todos iguais, no sentido positivo. Bom, a maioria é, graças a Deus. Na verdade, os autistas são pessoas como quaisquer outras; seres humanos com seu caráter pessoal. O que os une é o autismo; o que os difere são suas personalidades.
Conheci pessoas com o mesmo compromisso que o meu. Algumas me encantaram a princípio, porém, mais tarde, revelaram seus interesses pessoais, o que não condiz com a imagem que faço de um verdadeiro ativista. De algum modo, entraram no ativismo por idealismo, sim, mas com o tempo foram se distraindo com as vantagens materiais que aparecem nesta jornada. Enquanto estes se deixaram tomar pela ambição desenfreada, outros não perderam o foco e permaneceram fiéis à causa abraçada. Pessoas com autismo e pessoas não autistas, que fazem um trabalho fortalecido pela união e pelo bem maior de todos os autistas.
“Trabalhar em prol do autismo é uma arte. Reconhecer as pessoas comprometidas com a melhoria das condições de vida da criança, adolescente ou adulto autista, também.”
Fatima de Kwant
Lutar pelos direitos das pessoas com autismo já não é mais o que era na minha época. Para muitos, tornou-se um modo de ganhar popularidade, dinheiro, prestígio, dinheiro e até votos. Enquanto a demanda e a oferta aumentam (autistas e amigos dos autistas), diminui a luta pela causa unida e condizente com o ativismo purosangue – aquele sem interesse outro senão o bem maior da causa abraçada. Tem muito dele pelo mundo afora. Muitas pessoas de boa fé, de todas as nacionalidades, autistas e não autistas, que fizeram do autismo grande parte de suas vidas. Pessoas idôneas que lutam por si, por seus filhos e pelos (dos) outros. Gente que não esqueceu do porquê de ter abraçado a luta, e que não se distrai com as tentações que o ambiente apresenta e que seduzem o ego. Meu orgulho é imenso de conhece-las e de acompanhar seus trabalhos, seja no Brasil, na Holanda, ou qualquer outro país onde eu circulo para falar da minha missão de vida – o autismo.
Ativismo no Brasil
No Brasil, conheci pessoas que já lutavam há anos pelos direitos dos autistas. Amigos que me introduziram no espaço brasileiro do autismo, e me fizeram priorizar o país nesta missão imparcial.
Porém, também conheci outros tipos de ativistas – os falsos profetas – que ocuparam um espaço vazio no momento certo e obtiveram prestígio à revelia da falta de talento ou conhecimento suficiente do Transtorno do Espectro do Autismo. O hiato na qualificação preenchido por um ego avassalador e um feito, deveras, impressionante: a arte de impor um trabalho mal elaborado, sem planejamento minucioso, e sem abrangência para toda a comunidade autista do país. Uma grande resistência para quem luta pelo direito dos autistas sem interesses pessoais tomou conta da comunidade geral dos autistas, pais de autistas, terapeutas e médicos que também abraçaram a causa – muitos destes últimos, também, pais ou mães de pessoas com autismo.
Separar “o joio do trigo” é imperativo. Mas como fazê-lo? Como saber quem merece apoio, e quem não deveria sequer atuar na causa? A quem ouvir? Quem acompanhar? Quem tem razão – e quem fala como se tivesse? Enfim, como sobreviver à Torre de Babel do autismo? Algumas sugestões:
- Seguir as pessoas que fazem mais do que falam/escrevem.
- Pesquisar sobre os bons profissionais pela sua qualificação e, não, por seu preço.
- Encontrar estabelecimentos de ensino que compreendam a inclusão como deve ser feita – para ensinar a criança autista e, não, tolerar sua presença.
- Manter a cabeça aberta.
- Aliviar o preconceito (todos temos os nossos).
- Ser ativo pelo autismo (qualquer pessoa pode fazer alguma coisa em algum momento).
Sinto pelos que acabam de entrar no mundo azul*; vão precisar de muito bom senso e de muita sorte. São muitos os grupos divididos, propagando filosofias variadas através de redes sociais e/ou palestras:
- Pessoas que amam o autismo.
- Pessoas que odeiam o autismo.
- Pais que odeiam autistas.
- Autistas que odeiam pais.
- Ativistas que odeiam outros ativistas.
- Pessoas que defendem uma só terapia.
- Pessoas leigas cujo único link com autismo são seus filhos, mas falam por todos.
- Pessoas autistas cujo único conhecimento de autismo é o seu, de dentro para fora, mas falam por todos.
Que saudade do tempo em que aprendíamos sobre autismo na pós-graduação, nos cursos e palestras fornecidos pelos estudiosos renomados, e pelo contato diário e intensivo com todos os tipos de pessoas com autismo. Aprendíamos por horas de interação com as crianças e adolescentes e, mais tarde, com os autistas adultos quando os protocolos de diagnóstico de autismo facilitaram a melhor identificação. A internet, na época, servia como fonte de pesquisa. Não havia redes sociais para viralizar mentiras e dar popularidade a pessoas (autistas e não autistas) cuja proposta é a de colecionar seguidores, e obter vantagens que as redes sociais lhes trouxeram.
A falta de consenso no meio do autismo parece ser a maior entre todas as condições. Autistas de um lado, pais e mães, de outro; no meio, quem queira se beneficiar do reboliço.
“Autismo é politizado e vem sendo universalmente forçado na perspectiva de UM jeito de pensar, UMA terminologia, e isso vem sendo feito através de medo e bullying”.
Brian Bird, Asperger, self-autism advocate (Reino Unido)
Tendência mundial
Existe uma tendência mundial de um grande grupo de Autistas Aspergers – em sua maioria diagnosticados durante ou depois da adolescência – que rejeitam toda e qualquer ideia sugerida por pais e mães de autistas (moderados e severos). A discussão vai desde a terminologia (é ‘autista’ ou ‘pessoa com autismo’?) até um radicalismo curioso contra terapias que beneficiam o bem-estar de crianças e adolescentes com autismo – em especial, a Análise do Comportamento (ABA).
A Associação de Autismo americana, a Autism Speaks, é a Associação que mais recebe críticas das pessoas com autismo, internacionalmente. A Autism Speaks é acusada de promover a cor azul, de usar o quebra-cabeças como símbolo do autismo, e de propagar terapias que têm como base melhorar a condição geral dos autistas. Os Aspergers da ASAN (Autism Self Advocacy Network) afirmam que qualquer tratamento com vista à cura do autismo ou “normatização” da pessoa autista, deve ser rechaçada. Obviamente estão no seu direito, e devem ser ouvidos. Pessoalmente, não desejo a cura, tampouco tornar meu filho um neurotípico. Concordo e compreendo o posicionamento destas pessoas autistas. Porém, igualmente compreendo pais e mães de autistas severos, principalmente, quando afirmam que “dariam um rim” para verem seus filhos capazes de articularem seus pensamentos tão bem quanto estes autistas de alto funcionamento. É como se tudo o que fôsse sugerido por pais ou especialistas fôsse, a priori, condenável, incorreto ou inválido (porque vindo de alguém sem autismo). Será que tudo é tão preto e branco assim? Não há espaço para diálogo, já que o objetivo de todas as comunidades do autismo é o bem de todos os autistas, independente do grau de severidade? É uma discussão deplorável, cujo resultado é mais falta de compreensão e mais insegurança para os pais e mães de crianças autistas.
A vida dos autistas não é fácil. Os deficits na socialização e na comunicação dificultam sua convivência entre a maioria neurotípica. No entanto, pais de autistas também não encontram facilidade na tarefa de peso: educar uma criança com autismo. Sentem-se constantemente culpados. Ouvem absurdos como “Aceite seu filho e pronto…” ou “Você deve fazer isso e, não, aquilo…” Enquanto isso, pessoas aparecem por todos os lados tentando influenciar suas opiniões. Todos parecem ter a fórmula perfeita nesse aconselhamento teórico aos pais. Poucos têm as respostas, na prática.
AMOR, ATENÇÃO E LIMITES
Uma criança autista precisa de muita coisa. A lista é enorme e os sabichões de plantão poderão fazê-la. Porém, o que toda criança necessita – e, sem dúvida, toda criança com autismo – é de amor, atenção e limites. E o que é isso, na prática? O amor é o sentimento que move o mundo. O amor aceita, perdoa, entende e defende. Aceitação do filho diferente é saber que ele não é autismo; é uma criança, seu filho, pelo qual seus pais sempre irão buscar o melhor – seja qual for a percepção do que é melhor. Atenção para suas necessidades, limitações e possibilidades. Nem todo autista é um gênio – e não precisa ser. Orgulhe-se dele mesmo assim. Procure descobrir quais são seus talentos, seus hiperfocos, suas preferências e explore tudo o que faça com que se sinta bem. Evite criticá-lo, ou obrigá-lo a tornar-se uma pessoa neurotípica. Isso provavelmente não irá acontecer. O que é, sim, passível de realização é que esta criança se desenvolva de modo a exercer todo seu potencial sem desrespeitar as pessoas não autistas à sua volta. Autistas são diferentes, mas não devem ser mimados por seus pais por isso, a ponto de tornarem-se adultos intoleráveis (e intolerantes). Para muitos adultos autistas que passaram por uma infância e adolescência marcada por rejeição e bullying é difícil confiar nos neurotípicos. Muitos não percebem (ou não aceitam) que têm um problema que pode ser conduzido por um coach de autismo, em qualquer fase de suas vidas. Uma pessoa de confiança que faça uma ponte entre a pessoa com autismo e a neurotipia, sem interesse, sem prejuízo e sem partidarismo. Alguém sábio, ciente de que o autista precisa de respeito. Ao mesmo tempo, entender que o neurotípico de boa vontade, também merece o mesmo respeito. Alguém que “fale autismo”, mesmo que não seja autista/tenha autismo.

A ocorrência do autismo, atualmente, é de 1-36. Uma criança em trinta e seis encontra-se no Espectro do Autismo. Isso significa que, mais que nunca, devemos lutar por um mundo que aceite e compreenda a neurodiversidade. Um planeta que entenda e conviva em harmonia com todos os tipos de mente. Para tal, não pode haver predomínio de uma condição somente, mas consenso entre todas. No caso do autismo, autistas Asperger ou de Alto funcionamento e/ou cognição, aptos a emitirem seus desejos, expectativas e opiniões, devem dialogar com os não autistas de tal forma que um ponto de equilíbrio seja alcançado. Um nível de interação onde exista respeito mútuo e onde acordos sejam possíveis.
Deixem a Torre de Babel. Enquanto tantos falam línguas ininteligíveis, separadamente, pouco é compreendido, quase nada é aproveitado e utilizado para alcançar o status social e moral que os autistas tanto merecem.
*Mundo azul – referência ao autismo, cuja símbolo internacional é a cor azul, ainda que muitos autistas Asperger sejam contra a cor azul pela referência ao autismo como sendo mais prevalente em meninos do que em meninas.
** Torre de Babel – referência ao Livro do Gênesis da Bíblia. Na Torre de Babel todos falavam uma lingua diferente, logo, ninguem se entendia.
Fatima de Kwant é jornalista, radicada na Europa desde 1985. Mãe de um autista adulto, especialista em autismo nas áreas do Desenvolvimento e Comunicação Social. Ativista internacional do Espectro do Autismo.
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Diante de tanto brilhantismo só me resta aplaudir ?? de pé ???????? Concordo plenamente com você querida amiga ativista 1000! Onde há espaço para orgulho e soberba humana, o amor perde espaço, vira esta enorme Torre de Babel que em nada favorece a nossa causa e luta em prol dos nossos anjos. Obrigada Fátima de Kant.
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Acredito que qualquer seguimento existem pessoas mal intencionadas infelizmente, e é isso que dificulta muito a causa. Outra coisa que dificulta muito são as pessoas que se dizem interessadas mas na verdade observam suas ações para apenas criticar, não saem do lugar, por mais que vc queira que participem, a condição de reclamação eterna não muda. Essas pessoas felizmente aprendi a deixar no meio do caminho e seguir adiante. Eu quero a mudança no macrouniverso pq no meu microuniverso quem vai ter que lutar sou eu mesma então arregaçar as mangas na luta diária e lutar para que todos possam se beneficiar de direitos básicos. Entendendo que muitos virão depois de nós . Temos que deixar muito além de pedacinhos de pão no caminho . Por onde passarmos temos que deixar luz pois luz esclarece é mostra onde deveremos ir. A nossa luta irá garantir um futuro mais ameno há milhares de famílias que serão país de autistas e essas famílias não precisarão se desesperar pq ja estarão habituados com o autismo na sociedade. Eu sonho e continuarei sonhsndo enquznto eu luto .
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Muito obrigada pelo comentário, Fernanda.
Abraços,
Fatima
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Carissima amiga Fátima, quanta verdade, o quanto ainda precisamos de consenso e um novo paradigma de caminho para as familias e os autistas.
Grata, seu texto nos alerta.
Liê e Gabi autista.
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Liezinha, obrigada!
Só vejo agora!
Bj,
Fatima
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Seu artigo merece um prêmio! Parabéns!!! Quero guardar para reler e compartilhar com quem chega, para que não se assustem e se preparem pois os desafios da jornada não vem só de casa e da lida com os especialistas mas também do caos no mundo de informações e egos que há por aí. Muito triste, mas há muita esperança pois tem muita gente realmente interessada e fazendo muito e de forma quase invisível. Há horizontes. Obrigada Fatima, pelo trabalho primoroso.
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Meu amor, Cris, só vi seu comentário hoje…Mil perdões!
Obrigada por tantas palavras gentis, querida <3
Mil beijinhos,
Fatima
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Como sempre, fantástica em suas colocações que são muitas das vezes, minhas inquietações tb. Tenho percebido isso em vários grupos, com autistas ou n, profissionais, pais, e isto me traz uma angústia! Pôxa, se somos pais ou profissionais, n estamos trabalhando para eles, para melhorar a qualidade de vida deles? Para ajudá-los a serem independentes e com autonomia? Qdo vejo certos comentários, qdo vejo profissionais inflamando seus egos, dá vontade de sumir? Caramba! Na pp comunidade vemos isso! É muito triste sim e entendi perfeitamente o que vc quis dizer Fátima. Mas que bom que existe pessoas desprendidas do vil metal (que temos que cobrar ou não, pq temos uma formação contínua), mas sou justa e sei que existem profissionais Brasil afora que tem esta conscientização. Obrigada mais uma vez pelas suas palavras e quero afirmar aqui meu compromisso com a ética, profissionalismo e seriedade em prol da pessoa autista e suas famílias. Conte comigo! Abraços.❤️
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Muito obrigada, France!
Bjs,
Fatima