Espanha, 3 de agosto, 2017
Por Fatima de Kwant
Holanda, 1993
Eu estava na cozinha e fazia o lanche de minhas duas filhas pequenas. A TV da copa, ligada no noticiário do meio-dia, dava a notícia que deixou todos os pelos do meu braço arrepiados. Parei de dar a papinha para meu bebê quando ouvi o locutor relatar que um menino de dois anos havia sido sequestrado num Shopping de Liverpool, na Inglaterra. Com o coração apertado, olhei para a minha filhinha de apenas um ano e meio e fiz uma prece para que o menino fosse encontrado logo, são e salvo. Foi em vão. Dois dias depois, o corpo do pequeno James Bulger era encontrado sob um monte de palha, estendido nos trilhos de uma ferrovia local, nu e extremamente torturado.
O crime hediondo se tornou mundialmente conhecido quando, após um curto inquérito, os assassinos foram revelados: dois meninos de 10 anos.
A notícia chocou o mundo e levantou a pergunta: existe a criança má? A resposta é taxativa: sim. A sociedade resiste à ideia, e nenhum pai ou mãe vai gostar de admitir (ou até sabe que tem em casa), mas crianças com má índole existem, e são de todos os tempos.
M., de 7 anos, convenceu os pais de que estava sendo maltratada pela babá. Segundo ela, a babá lhe batia constantemente enquanto seus pais trabalhavam. Os pais confrontaram a babá, que negou tudo, veementemente. Não satisfeitos, colocaram câmeras escondidas na sala da casa. O que viram foi uma cena tão grotesca quanto surreal: não a babá, mas M. era agressora. O vídeo mostrava a menina batendo na moça. Com uma raiva que seus pais nunca tinham visto antes, M. xingava a babá e dizia que iria matá-la. Os pais confrontaram M. que, chorando muito, disse tê-lo feito porque a babá a havia agredido na cozinha, antes daquele episódio. Seus pais, apavorados, decidiram consultar um especialista. Após algumas consultas, receberam o laudo devastador: Transtorno de Conduta, personalidade antissocial em formação; sinais de psicopatia.
M. é um dos casos de crianças más; aquela que nenhum pai ou mãe quer ter.
Índole ruim
Os Transtorno de Conduta e de Personalidade são os piores transtornos que a Psquiatria registra.
As pessoas afetadas por este transtornos nascem predispostas a desenvolverem um comportamento muito prejudicial para si mesmos e para o ambiente em que circulam. Em algumas situações , como no caso do Transtorno da Personalidade Antissocial, pode aparecer somente na adolescência e ter causas numa educação desiquilibrada. A personalidade antissocial é uma das mais difíceis de serem identificadas pela semelhança com outros distúrbios de personalidade, dentre eles a Psicopatia. *
- Alguns cientistas discutem se a Psicopatia deve ser considerada um Distúrbio de Personalidade.
Mentiras descaradas
As crianças más mentem sem cerimônia. Seja para se ausentarem de culpa por um ato que cometeram, ou para conseguirem seus objetivos, inventam histórias. São mentiras tão bem contadas (descaradas) que muitos pais acreditam sem duvidar.
Algumas crianças são verdadeiras artistas e até derramam lágrimas, convencendo o adulto da “veracidade” dos fatos.
Muitas vezes, as escolas conseguem identificar problemas de conduta nas crianças antes de seus pais. As crianças passam grande parte do tempo ativo na escola e ali são observadas de modo imparcial. Farsas e pequenas maldades são mais facilmente identificadas fora de casa. Mentiras são comuns na infância, mas 3% das crianças mentirosas, manipuladoras e cruéis, apresentam um transtorno grave que pode levá-los a desenvolver uma personalidade problemática e antissocial.
À medida que uma criança cresce, os sintomas vão ficando mais fortes. As crianças se tornam cada vez mais inventivas e com habilidade de enganar o outro. Sem tratamento, o desenvolvimento de uma personalidade antissocial ou psicopata (o que ficará claro mais tarde) pode estar em avanço.

O tabu da criança inocente
A partir do século XVIII, com a evolução da sociedade burguesa, o sentido de família mudou para o que vemos ainda hoje: a família se fechou e colocou os filhos no centro. Não mais vistos como “pequenos adultos”, como no séculos anteriores, as crianças se tornaram santificadas, inocentes, incapazes de sentimentos inferiores que, com certeza, poderiam somente ser aprendidos mais tarde, durante o desenvolvimento devido a fatores sempre externos – as más amizades ou famílias problemáticas. A criança era, por natureza, sempre boa. No entanto, a Psiquiatria contesta este conceito antiquado da criança perfeita.
O estudo da personalidade do indivíduo segue em evolução. Neurocientistas, psiquiatras e psicólogos, todos, estão constantemente tentando entender a mente humana e como se desenvolve. Dentro desta pesquisa, é imperativo considerar os Transtornos de Conduta na infância.
Os Transtornos de Conduta vão dos mais leves ao mais graves. Um comportamento não correto passa a ser considerado como transtorno quando prejudica uma ou mais pessoas afetadas por este mesmo comportamento.
Tem cura?
Os Transtornos de Conduta quando originados por fatores externos, apresentam boas chances de desaparecerem. A medicação supervisionada pelo psiquiatra pode, sim, arrefecer estes sintomas do paciente, deixando-o mais calmo e apto a controlar melhor suas emoções. Terapias podem ajudar a pessoa com um Transtorno de Conduta. Já os casos mais graves, com tendências sociopatas, exigem um longo acompanhamento profissional, e com resultado nem sempre satisfatório. Isso porque o paciente, por vezes, é resistente ao diagnóstico. Para ele/a o problema ou culpa é sempre do outro, nunca de suas ações.
Uma pessoa sem empatia dificilmente irá desenvolvé-la. Porém, ela pode aprender – através da sua capacidade cognitiva – que algumas ações suas geram prejuízo para terceiros. O paciente aprende a fazer escolhas, e a estar mais ciente de seus atos – muitos destes gerados pelo egocentrismo inerente à base de seu transtorno.
As terapias mais aplicadas são a Terapia Cognitiva de Socialização, a Terapia do Controle da Agressividade e medicação psiquiátrica.
Culpa dos pais ou do meio ambiente?
Segundo a Pedagoga holandesa, Annelies Janssens, com doutorado em Ciências Humanas, tanto os genes quanto o meio ambiente influenciam um ao outro, no desenvolvimento de uma personalidade com problemas de conduta. Tais genes podem influenciar o desenvolvimento de uma criança, tanto positiva quanto negativamente. A combinação dos genes e do meio ambiente irão definir o aparecimento ou não de problemas de conduta.
Sendo assim, pais gentis e empáticos podem ter um filho com este transtorno tão devastador. Enquanto crianças geneticamente favoráveis, mas criadas num ambiente desfavorável, podem desenvolver uma boa conduta, mais tarde, ao receberem tratamentos ou acompanhamentos adequados.
Meu filho é mau? O que eu devo fazer?
Pais podem educar seus filhos com limites e regras que serão bastante importantes no desenvolvimento geral de seus filhos até a vida adulta. Mimar um filho que apresente problemas (graves) de comportamento, pode trazer graves consequências. O melhor presente que pais podem dar a seus filhos, além do amor e cuidado, são limites que irão defini-lo como ser humano ciente da necessidade do próximo, também.
É natural defender o filho com unhas e dentes. Quando um professor reclama do comportamento, ou um amiguinho diz que não gosta de brincar com o filho de alguém por este ser mau, pais se colocam em posição de defesa. No entanto, se as reclamações são de diversas fontes e constantes, os pais devem procurar obter mais informações antes de considerar implicância dos professores ou dos outros amiguinhos. Em caso de dúvida, consultem um especialista. Observem a criança o mais imparcialmente possível. “Jogue verde” para ver se a criança realmente fala a verdade. Quando a criança reincidir nas faltas, consulte um psicólogo ou psiquiatra infantil.
Sinais precoces de transtornos de conduta
- Mentiras elaboradas
- Tentativa de manipulação por chantagens
- Pequenos furtos
- Maldades frequentes com irmãos e amigos sem demonstrar sentimento de culpa
- Prazer em cenas mórbidas com animais
- Explosão emocional ao ser contrariado
- Falta de tolerância à frustração
- Culpar os outros por seus erros
- Egocentrismo exagerado
- Falta de solidariedade
- Falta de empatia
- Dificuldade em manter amizades
- Arrogância extrema (inclusive com os pais)
- Prazer ao ferir ou humilhar o próximo
- Vandalismo
*Se você desconfia que um parente, amigo ou conhecido tenha este distúrbio, peça a ajuda do seu próprio médico em como conduzir a situação.
Características de um (jovem) adulto com personalidade antissocial*:
- Um padrão de falta de respeito e obediência pelos direitos de outras pessoas:
- Inconformismo com a norma ditada pela sociedade
- Mentiras em serie, falsificações em beneficio próprio.
- Impulsividade ou impossibilidade de antecipar suas ações. Exemplo: deslocar-se de local a local, sem rumo e sem objetivo.
- Irritação e agressividade
- Ignorar perigos. Exemplo: dirigir perigosamente ou bêbado/drogado.
- Irresponsabilidade constante. Exemplo: não conseguir parar num emprego, pagar suas contas ou outras ações que envolvam responsabilidade.
- Audiência de sentimento de culpa. Insensibilidade ou consciência de ter prejudicado terceiros com suas ações.
* O critério para a avaliação é a partir dos 15-18 anos de idade, sendo que os primeiros sintomas podem ser observados entre 8-9 anos.
* A personalidade Antissocial e a Psicopatia se entrelaçam, mas são dois transtornos diferentes. Segundo uma pesquisa holandesa, 88% dos psicopatas preenchem o perfil da personalidade antissocial, e ¼ das pessoas com personalidade antissocial é composto de psicopatas (Hildebrand, 2004.)
Sintomas da psicopatia na idade adulta:
- Charme superficial, o vulgo “bom de papo”
- Sensação exagerada de valor próprio
- Mentiroso patológico
- Manipulador, traidor
- Ausência de sentimento de culpa e de arrependimento
- Ausência de profundidade emocional
- Ausência de Empatia
- Falta de responsabilidade por seu comportamento
- Não suporta tédio; busca sempre por estímulos
- Ausência de objetivos a longo prazo
- Impulsividade
- Relações amorosas curtas
- Comportamento irresponsável
- Dificuldade em controlar o comportamento
- Problemas de comportamento na juventude
- Desrespeito à regras de comportamento
- Reincidência (em caso de condenação prévia)
- Praticas criminais de vários tipos.
Antissociais e psicopatas em formação
A criança má é um fenômeno de todos os tempos. Intervenções precoces são essenciais para o controle de problemas mais graves no futuro.
A boa notícia é que 60-75% destas crianças não desenvolverão uma personalidade antissocial/psicopata/sociopata. Com tratamento adequado poderão viver normalmente, sem prejudicar terceiros. Mas um grupo pequeno de crianças sofre de um distúrbio perturbador. Crescerão para serem adultos sem senso de ética e moral.
Enquanto crianças, os adultos à sua volta precisam estar cientes de que estas crianças podem ser maquiavélicas, apesar da tenra idade. Podem enganar seus pais de sua inocência. Durante o período de tratamento, muitos pacientes mais jovens manipulam seus pais a acreditar que estão “curados”. Os pais acreditam nos filhos e pedem pelo encerramento da terapia. Na realidade, estas crianças são uma bomba relógio.
Pais gostam de crer que seus filhos são boas pessoas. Quanto menor, mais angelical. No entanto, as estatísticas não mentem. Três % das crianças têm um severo Transtorno de Conduta, que poderá levá-la a desenvolver uma personalidade, no mínimo, indesejável, Na pior das hipóteses, serão cidadãos antissociais ou psicopatas.
Fontes consultadas: https://opgroeienblog.wordpress.com/2015/12/10/gedragsproblemen-aangeboren-of-aangeleerd/
OBS: Este texto não tem a ver diretamente com autismo. Existem autistas com a comorbidade do Transtorno de Conduta, mas este não é devido ao autismo.
- Fatima de Kwant é jornalista radicada na Holanda desde 1985, especialista em autismo e mãe de um autista adulto.
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