Rio de Janeiro, 17 de outubro, 2017
Por Fatima de Kwant
Um recente artigo sobre autismo, publicado no DN Sociedade, em Portugal, chamou a atenção pelas alarmantes informações. No artigo, um renomado especialista da Associação Portuguesa para o TEA, afirma que “…são casos extremamente raros, raríssimos. Situações extraordinárias, uma em milhões”. Uma afirmação incorreta e perigosa, até. Incorreta porque sabe-se (fora de Portugal, talvez) que as pessoas autistas de alta funcionalidade, como os Aspergers, são aptos a exercerem quaisquer profissões às quais tenham dirigido seus hiperfocos – as habilidades em que focam seus talentos individuais; perigosa afirmação porque inibe a intenção de estudantes de medicina, e médicos já estabelecidos, a falarem sobre seus autismos em público. São muitos, milhares em um milhão, à revelia do texto português.
Na Holanda, um país conhecido pela cultura e mentalidade flexível, existe um network de médicos, o ‘Artsen met Autisme’ ou ‘Médicos com Autismo’, em Português. Criado em 2016 pelo médica Els van Veen, o Movimento visa unir todos os médicos dos Países Baixos diagnosticados com autismo. Em 2014, a dra. Van Veen (1970, Amsterdam) foi diagnosticada com TEA. Ela já exercia a medicina há anos. A reação do seu circulo familiar,de amizades e do trabalho foi de incredulidade. Para contribuir com a conscientização, a Dra. Van Veen concedeu uma entrevista anônima ao Medisch Contact (Contato Médico) https://www.medischcontact.nl/nieuws/laatste-nieuws/artikel/Huisarts-met-autisme.htm. A entrevista originou centenas de feedbacks à redação, de médicos com o mesmo diagnóstico que a entrevistada.
Em novembro de 2016, foi lançado o site do Movimento. Cinco meses após, em abril de 2017, houve o Primeiro Encontro destes médicos.
A ideia concebida de que pessoas autistas com alta inteligência procurem profissões em Informática e Tecnologia não é de todo correta. Cada vez mais há levantamentos no setor da saúde comprovando a presença de autistas nas profissões de enfermeiros, fisioterapeutas, médicos e cirurgiões.
A Dra. Van Veen é uma ativista holandesa que empenha-se em informar a classe médica (psiquiátrica) sobre as inconsitências que regem a perspectiva geral desta classe com respeito ao TEA.
“ Através do diagnóstico, eu obtive valiosas informações sobre mim mesma. Porém, como medica autista, descobri o efeito contrário que ainda predomina. Todos os tipos de especialistas conhecem e falam sobre o que artigos em revistas escrevem sobre a falta de empatia dos autistas. Isso não é legal quando você mesma tem este diagnóstico e trabalha como médica”, diz a profissional da saúde. Seguindo, ela conta: “Por causa deste estigma, muitos profissionais com alta graduação preferem não ser associados com o seus autismos.” Uma pena para a Conscientização, sem dúvida.
Enquanto na Holanda o tabu vem sendo quebrado, em outros países, médicos e outros profissionais ainda enfrentam uma grande barreira para serem respeitados como trabalhadores capacitados, apesar do diagnóstico dentro do TEA.
Uma das razões para a tal barreira é a falta de Conscientização em massa. No Brasil e em Portugal, por exemplo, o Espectro do Autismo ainda não parece ser compreendido em sua totalidade. As necessidades de um grupo com maiores limitações (autismo severo) são diferentes de outros grupos, com menores limitações na área da funcionalidade e na área cognitiva (autismo moderado ou leve). Enquanto pais de autistas mais comprometidos sonham com políticas públicas que proporcionem tratamentos e assistência ao longo da vida de seus filhos, o segundo grupo sonha com sua independência e seus direitos como cidadãos, acima de tudo. Entre eles, encontram-se pessoas autistas ativas, empenhadas em colaborar para a quebra do estigma. Em ambos os casos, seus propósitos são legítimos e deveriam ser acatados como um direito humano em busca da merecida igualdade.
No caso do grupo que abordamos neste artigo, a classe médica, o desejo de clarificação diante da sociedade é grande, mas o medo do impacto negativo pela mesma – e pelos próprios colegas de profissão – ainda impera. O fato faz com que especialistas da Saúde Mental confundam-se a ponto de proferir frases estigmatizantes, não condizentes com a realidade.
Abaixo, alguns depoimentos de pessoas autistas adultas, profissionais de Medicina, Odontologia, Psicologia e Veterinária.
M.G.C., 49 anos, médico perito do INSS, socorrista do SAMU. Asperger:
Fui diagnosticado há dois anos, e me sinto bem melhor, agora. Sofri bullying na infancia e na epoca da faculdade quase ia desistir do curso de medicina por causa do bullying e tam bem por causa da dificuldade da motricidade fina. Todos me achavam sitematico e meio diferente. Adoro futebol, mas tenho dificuldade de socializar
Roberto Mendes, psicólogo, graduado em Psicologia Hospitalar e saúde mental. Rio de Janeiro:
Estou terminando uma terceira pós graduação, Neuropsicologia. Atuo na profissão há quatro anos, capacitando-me cada vez mais em psicopatologias, transtornos e síndromes. Realizo avaliações e ajudo em diagnósticos. Tenho hábitos estranhos, desinteresse no que a maioria das pessoas gosta… Durante minha vida ouvi pessoas dizerem: “você não sabe fazer nada!”. Foi aí que decidi a ajudar outras pessoas como eu. Fui técnico de enfermagem e neste período casei…Tenho depressão, ansiedade, hipersensibilidade sensorial e outras cosas mais, porém, mantenho o hiperfoco: ajudar pessoas que sofrem como eu.
Helen Clehr, quiroprático, Estados Unidos
Sou graduada em Medicina Quiroprática. Se a pessoa autista é verbalmente adaptada e seu interesse especial é o corpo humano, por que seria impossivel ser médica?… Minha motricidade fina não é boa, mas isso não me impede de sentir os ossos mais finos e pequenos no pescoço de um paciente, identificar por que não se movem apropriadamente, e restaurar o movimento do seu pescoço. Não saberia explicar como ou por quê, mas é assim.
John Beck, 53 anos, Asperger, Dr. At the State of Illinois Traumatic Brain Injury Program:
Graduei-me aos 21 anos, fui para a Escola Médica de Combate do USArmy onde sobressaltei por meus servicos. Servi às forças da NATO, na Europa, onde fui condecorado com a medalha de Ex pert da Medicina de Campo – condecoração mais prestigiosa pela busca da paz. No momento, tra balho para o Estado de Illinois, no Centro de Trauma. Ainda salvo vidas como Médico Assistente Re gistrado há mais de treze anos.
A.C.D., estudante de Medicina, Asperger. Brasil:
Sou estudante da Faculdade de Medicina e sou autista. Pretendo ser excelente profissional, pois é minha alegria alcançar isso. As lutas de um autista são grandes, mas isso não impede de forma algu ma de alcançarmos nossos sonhos: os sonhos que pretendemos.
Luciana Sant’Ana de Souza, 40 anos, odontologista e médica da Clínica Escola Mundo Autista, autismo leve. Casada com Márcio Pedrote de Carvalho, médico veterinário que, atualmente, estuda medicina. Brasil:
Fiz faculdade de Odontologia e Medicina para tentar entender o meu filho, que é autista. Meus mai ores problemas durante a vida foram a socialização e dificuldade na quebra da rotina. Muita coisa na medicina e na odontologia exigem contato físico e questionamentos, o que me deixava muito desconfortável. Situações novas me desestruturavam, mas o próprio curso funcionou como terapia, uma vez que somos expostos a esses eventos diariamente. Outro fato que ajudou a mim e a meu marido foi o diagnóstico do nosso filho. Até então não sabíamos que éramos ambos autistas… Meu marido é médico veterinário e segue rigidamente as regras e rotinas, o que o torna um funcionário exemplar na função de médico veterinário. Além da experiência pessoal com o autismo, o nosso foco, a persistência em fazer as coisas conforme as regras levam a maior credibilidade em nossos projetos profissionais, como a criação da Clínica Escola Mundo Autista.
Em todas as partes do mundo existem profissionais da saúde física e mental, médicos e cirurgiões, com autismo. São pessoas altamente capazes que sobreviveram os desafios iniciados na infância e adolescência, principalmente, quando autismo era considerado sinônimo de deficiência intelectual. Estas pessoas, homens e mulheres, cresceram sem diagnóstico, acreditando serem estranhos, sofrendo para integrar-se ao círculo onde tinham que estar. Graças a sua alta intelectualidade e capacidade cognitiva, conseguiram graduar-se em profissões de prestígio – como são os médicos e cirurgiões. Estes últimos, obviamente, sem limitações da motricidade fina.
Médicos autistas existem e são tão capazes quanto colegas sem autismo. Não é exceção que sejam mais capazes, até, devido aos talentos também atribuídos aos autistas como, entre outros:
- Memória fotogáfica
- Hiperfoco
- Detalhismo
- Capacidade de reconhecer sintomas de autismo em seus pacientes
- Pragmatismo
- Sinceridade
Talvez seja questão de tempo até que médicos de outros países, a exemplo da Holanda, reunam-se em Associações com a finalidade de desmistificar o conceito retrógrado de que exercer a profissão da Medicina – e outras do setor da Saúde e Bem-Estar – seja privilégio de pessoas neurotípicas (não autistas).
Apesar da simpatia e sociabilidade serem belas características num profissional da saúde, o paciente sempre irá esperar por um médico competente, ainda que menos sociável.
- Fatima de Kwant é jornalista radicada na Holanda desde 1985, mãe de um autista adulto, Especialista em Autismo & Desenvolvimento e Autismo & Comunicação. Escritora de textos sobre o Espectro do Autismo e palestrante internacional, defende os direitos dos autistas pelo mundo, através do Projeto Autimates.
Sobre Fatima de Kwant nas redes sociais:
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Excelente matéria!
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Obrigada, Luciana!
Bjs,
Fatima
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Fantástico saber que minha neta, diagnosticada Asperger tem grandes possibilidades de vir a ser uma excelente médica autista. Digo isto, porque, já nos deparamos brincando vez por outra como se ela fosse médica, e olha! interpreta bem rsrs, tem cinco anos e é muita comunicativa, enfim…
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Boa noite! Muito interessante e importante assunto abordado. Tive contato com um médico que me deixou com muitas dúvidas. Pois se apresentava um excelente profissional, entretanto me questionei pois o mesmo apresentava características asperger, super dotação e perversidade. Contudo muitas características são similares. Como compreender e identificar as particularidades de cada uma delas?
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Olá Angela,
É muito difícil falar de um atuista que não examinamos. O autismo pode vir com outros distúrbios adicionais. vocie fala em perversidade, e eu penso num Transtorno de Conduta ou até uma certa Sociopatia. Autismo tem como base o deficit na Comunicaçao, Interação Social e Comportamento sistematico (repetitivo, estereotipias, comportamento diferente). A perversão é outra coisa. Tem a ver com personalidade e, não, com neurodesenvolvimento. A superdotação pode acompanhar o autismo e a personalidade. No caso, é importante ser minuciosamente examinado antes de falarmos em diagnóstico.
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O que vemos aqui nessa matéria é que nem todo autista mora no vale do silício, e que sim eles são capazes de atuarem em qualquer profissão, mas gostaria de salientar que o autista moderado e severo poderia ser treinados ensinados a uma atividade, mais simples, não importa, assisti, numa conferencia, um médico americano mostrando três autistas severos, trabalhando usando seus cartões de comunicação, vejo meu filho autista moderado com vai comigo no mercado, ele organiza as gôndolas que as outras pessoas deixaram desarrumadas, ele pega frutas caídas do chão e leva para lugar correto, ele pega o carrinho depois que tirei as compras e leva de volta , fico triste porque ele poderia ter sido trabalhado para isso, uma função simples, sem diploma universitário, mas útil.
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OI Lie,
Só consegui tempo para meu site, hoje.
Sim, os autistas podem aprender muitas atividades e terem um trabalho.
Este artigo foi escrito sob encomenda para a classe meedica Asperger. O problema é que especialistas de Portugal não acreditam que autistas de alto funcionamento ou Aspergers podem ser meedicos.
Bjs, querida.
Fatima