Holanda, 24 de maio de 2017
Nada mais natural do que a Comunicação. Um bebê recém-nascido já se comunica através do choro: desconforto, fome, medo, fralda suja. O ser humano, autista e não autista, se comunica o tempo todo.
A comunicação é a troca de informações entre duas ou mais pessoas através de som (como a fala e a entonação) e forma (imagem, símbolos e texto). Esse contato também inclui o comportamento, através do qual muitos significados são demonstrados.
AUTISMO E A COMUNICAÇÃO VERBAL
Neste artigo, vou abordar a Comunicação verbal no autismo tentando esclarecer alguns mitos de que o autista não se comunica, ou não gosta de se comunicar, assim como exemplificar situações nas quais a criança, jovem ou adulto autista pode ser beneficiado por uma maneira positiva de usar a fala para se comunicar, efetivamente, com outras pessoas.

O deficit na Comunicação é um dos três pilares que definem o TEA. Muitos autistas não compreendem as regras da Comunicação Social, que parecem tão naturais aos neurotípicos.
Entre estas, a expressão facial, corporal, o tom de voz e a expectativa do feedback. Porém, muitos neurotípicos tampouco a dominam. Comunicar-se bem é mais difícil do que muitos pensam. A boa (efetiva) comunicação consiste em emitir uma informação, esperar a mensagem ser compreendida e ouvir o interlocutor replicar (feedback). É um processo contínuo que termina quando um dos interlocutores cessa de dar o feedback, terminando a conversa.
As três ações na Comunicação são:
- Emissão – a mensagem é emitida;
- Interpretação – a mensagem é interpretada pelo interlocutor;
- Reemissão ou Feedback – a mensagem é devolvida para o emissor.
A comunicação efetiva consiste no bom decorrer deste processo de Emissão-Interpretação-Feedback. Quando este processo é perturbado, observa-se um problema de Comunicação.
A ação de falar é tão automática que esquecemos, facilmente, que para isso, o ser humano ativa várias redes de neurônios. Na verdade, falar é um milagre da natureza.
Nem todo mundo tem a chance de desenvolver essa ativação cerebral intensa e harmônica. Algumas pessoas, como os autistas, podem ter grandes desafios ao falarem.
O autismo não é uma doença, tampouco uma deficiência, se entendermos a síndrome sob uma perspectiva neurodiversa. O autismo é uma condição ou natureza – como alguns autistas preferem dizer – onde o processamento neurológico, biológico e sensorial difere da maioria das pessoas.
Em outras palavras, o desenvolvimento do autista, seu organismo e a maneira como processa informações (processamento sensorial) influenciam seu comportamento social e a forma como se comunicam.
Se observarmos bem, são pontos que também atingem os neurotípicos, porém, de modo mais brando devido à capacidade do neurotípico em filtrar muitos dos estímulos que chegam até ele.
Exemplo: duas crianças, uma neurotipica e a outra autista, numa sala com uma luz forte. A luz pode incomodar a ambas. Porém, o neurotípico é capaz de seguir sua tarefa ainda que a luz intensa o incomode; o autista, por sua vez, pode não conseguir terminar a tarefa devido à intensidade com a qual a luz é captada por ele, podendo, inclusive, causar dor a seus olhos, até lhe causando dores na vista.
Seria a irritação natural de alguém que está há horas sem comer. A sensação de fome é um incômodo que muitos neurotípicos têm, mas tentam segurar o anseio por comer até terem a oportunidade. Um autista já pode ficar tão irritado a ponto de ter um surto, ou ser incapaz de terminar uma tarefa antes de ingerir um alimento.
Por outro lado, uma pessoa neurotípica que esteja gripada, com febre, pode não ser capaz de trabalhar naquele dia, enquanto o organismo do autista pode ignorar o mal estar e fazer com que ele siga trabalhando, até desmaiar até um certo momento.
São alguns dos vários exemplos em que não só o funcionamento, como também a comunicação da pessoa autista fica comprometida.
Comunicação com uma pessoa autista
Independente do nível de desenvolvimento do autista, faça com que ele sinta-se bem. Sabendo que tipo de pessoa é o autista, fica mais fácil faze-lo sentir-se bem, a ponto de querer se comunicar.
Escolha um momento em que esteja tranquilo, que não sinta desconforto, que não esteja sendo desafiado por estímulos do meio ambiente (ruídos, luzes, odores e qualquer coisa que desestabilize seu sistema sensorial).
O autista não verbal
Em primeiro lugar não parta do princípio de que deve “consertá-lo”, mas procure encontrar a maneira de agir com o autista como indivíduo. Que personalidade o autista tem? Do que ele gosta? Que tipo de atividade prefere executar? Ele tem problemas de ordem sensorial? Quais? Anote tudo o que faz com que o autista em questão se sinta bem.
Perceba sua linguagem não verbal. Muitos autistas, quando fazem estereotipias enquanto o terapeuta ou os pais falam com ele, também estão se comunicando. Interprete com cuidado e sempre fazendo uma boa observação:
O autista está irritado ou sorri enquanto faz as estereotipias?
Se ele parece se divertir, pode ser que esteja compreendendo o que o terapeuta lhe diz, ainda que pareça o contrário.
Enquanto as crianças neurotípicas param e olham para o adulto com atenção (ou obediência) ao comando, os autistas podem querer se movimentar. Não interprete isso como falta de cooperação na comunicação. Esta pode ser (por enquanto) a única maneira dele escutar(processar) o que o terapeuta tem a dizer.
Obviamente, não é um modo fácil de ensinar. A tendência é que mude para a atenção compartilhada com o decorrer das sessões. Aos poucos, o autista vai trocar as estereotipias pelo tempo em que aprecia ouvir o terapeuta.
O autista verbal
A criança ou (jovem) adulto que fala, pode ter ainda algum comportamento diferenciado em relação à Comunicação. Imagine pedir ao autista que fale como foi seu dia na escola. Boa chance dele não responder, ou responder com “bom” ou “ruim”.
No estímulo da Comunicação Verbal, pedimos aos pais e professores para dar tempo ao autista de processar informações do modo mais tranquilo possível. Isso significa que devem evitar fazer muitas perguntas de uma só vez:
Exemplo a ser evitado
“Como foi na escola? Foi legal? Comeu a merenda? Brincou com o amiguinho?…”
Faça uma pergunta de cada vez. A cada pergunta, espere pela resposta, ainda que esta demore (30 segundos de demora é normal no autismo).
Troque por:“Como foi na escola?” Espere a resposta. Se não vier a resposta após esperar entre 30 segundos a um minuto, refaça a pergunta dando ao autista duas ou três opções de respostas: “Foi bom na escola, hoje? ou não foi bom?” Dê tempo a ele de responder “sim” ou “não”. *
Com o tempo, aprimore esta técnica de dar opções de respostas (prováveis dele responder) ao autista. A cada resposta, estique o tema: “Ah, não foi bom… Ok. Não foi bom porque a aula não foi interessante ou porque aconteceu outra coisa na escola?”… Mesmo processo de aguardar pela resposta. Assim, vai-se estimulando o autista a falar/comunicar-se cada vez mais.
Torne o ato de falar uma brincadeira, não uma obrigação!
Qualquer situação pode ser aproveitada para estimular a fala. Não é preciso sentar frente a frente. Vá brincando e vá falando no tempo do autista: se o tempo ainda é devagar, fale devagar, usando frases curtas e claras. Se o tempo do autista é normal, ainda assim fale mais devagar que ele.
Alguns autistas falam rápido para não esquecerem o que precisam/querem dizer. Se falarem muito devagar, o processamento da linguagem (que é ditado pelo cérebro), pode se perder e ele esquecer o que queria dizer.
Siga falando com calma e claramente, além de, claro, dar-lhe tempo para iniciar a resposta. Não interrompa o autista enquanto ele fala. Isso pode fazer com que o processo de interpretação seja cortado e ele precise começar tudo de novo antes de dar uma resposta.
Alguns pais ficam tão felizes quando seus filhos começam a falar que esquecem de ensinar-lhes, também a escutar. Quando perceber que a criança já fala razoavelmente bem, diga-lhe para esperar você falar.
Faça disso uma brincadeira: ele fala, você, fala, ele fala. Pegue um microfone de brinquedo e use como símbolo, tal que quem segure o microfone tenha a vez de falar, enquanto o outro escuta. Se responder à pergunta (escutar efetivamente) ganha pontos. Os pais, terapeutas ou professores podem criar uma tabela de pontos, tal que no final da semana os pontos virem um brinde a escolher.
Não corrija muito o autista, repetidamente. A correção consecutiva pode gerar insegurança. Corrija sem usar a palavra “não”. Ao invés de dizer: “Não, não é PABO; é PATO”, diga: “Uau! Você falou PATO? Que legal!” Aumente sua auto estima e o autista gostará de falar mais.
*Observe se é uma resposta ou Ecolalia.
*No caso de ser uma pessoa desconhecida (na rua, por exemplo), em caso de dúvida quanto às intenções da pessoa, opte por não reagir.
O AUTISTA VERBAL QUE QUER APRIMORAR A COMUNICAÇÃO
A comunicação não consiste somente na linguagem. É todo um ritual que reflete o comportamento da sociedade onde se vive. Na sociedade ocidental, moderna, faz parte da boa Comunicação Social:
- Saudar os presentes quando se entra num local ou quando se vê alguém pela primeira vez no dia;
- Despedir-se de quem está presente quando se deixa um ambiente (casa, escola, trabalho, etc;
- Ouvir e falar (conversar) – não só falar; não só ouvir;
- Responder ao ser indagado;
- Perguntar quando houver necessidade;
- Reagir ao que é dito (quando alguém comenta alguma coisa, buscando contato visual ou virando seu corpo na direção de outra pessoa, como quem espera que haja um comentário em retorno.)**
Às vezes, estas regras básicas não são claras para os autistas, ainda que tenham uma inteligência cognitiva normal ou alta. Isto não será um problema se ele souber conviver com a situação – e se às pessoas à sua volta não considerarem um problema.
Quando o autista encara como um problema e deseja adaptar-se, há cursos de comunicação especializados que podem ajudá-lo a comunicar-se bem.
PIC – Planejamento Individual de Comunicação
Antes do início do curso (ou período de Coaching) é feita uma análise do que o autista e do que considera ser um problema no modo de comunicar-se com as outras pessoas no seu dia a dia.
De acordo com suas expectativas, é feito um Planejamento Individual de Comunicação (PIC).
Neste planejamento podem ser incluídas estratégias variadas, tendo como base os objetivos a serem alcançados.
Exemplos:
- Quando falar com alguém.
- Como aproximar-me de alguém.
- O que devo falar? Devo falar?
- Durante quanto tempo devo falar sobre o que eu quero?
- Qual a distância física devo manter entre mim e meu interlocutor?
- Devo dar dois beijinhos ou um aperto de mão?
- Quantas vezes devo dar “tchau” para alguém? Na entrada do trabalho, na saída do trabalho… e no meio tempo? Dou tchau quando vejo alguém pela segunda vez?
- Como me comportar num grupo de pessoas (três ou mais)? Quando devo falar?
- Se disserem algo que eu não entendo, devo perguntar ou ficar calado?
- Como posso identificar se alguém está debochando de mim, ou fazendo uso de ironia?
- Como me comportar numa festa/reunião/grupo?
- Como preencher o “vazio” (quando nenhum dos dois fala) numa conversa a dois?
São perguntas/situações que parecem fáceis para uma pessoa neurotípica, mas podem ser um calvário para uma pessoa autista. São, também, perguntas que nem todos os autistas têm.
O PIC é feito com base numa análise prévia, feita pelo Especialista em Autismo e Comunicação, que inclui o grau de autismo, o desenvolvimento cognitivo, o perfil de inteligência, e os objetivos a serem alcançados pela autista que procura o coach de Comunicação.
O período de treinamento não é fixo, podendo levar poucas sessões até várias. O autista será instruído a praticar as técnicas de comunicação aprendidas o máximo possível, até que as incorpore e utilize no seu dia a dia, tornando a comunicação com seu círculo familiar, profissional e de amizades a melhor possível.
O coaching do autista adulto é estritamente voluntário, ou seja, não deve haver pressão da família, ou de terceiros. O autista que queira comunicar-se bem, no meio neurotípico, tem todo potencial para isso, mas deve fazê-lo por opção.
Quando os objetivos que o autista busca são alcançados, termina o período de coaching, sempre de acordo entre o terapeuta e o autista. Sendo necessário, pode-se dar seguimento ao coaching com apoio esporádico, a nível de apoio.
Os treinamentos podem ser feitos em clínica, através de consultas por telefone, ou através da internet (Skype, e-mail, chat). O autista sempre escolhe o meio de Comunicação. Não raramente, um treinamento começa virtualmente e, num estágio posterior, o autista tem sessões em clínica, pessoalmente.
A Comunicação não é apenas verbal. Existem outras formas de Comunicação e todas podem ser igualmente eficientes. Alguns autistas se expressam muito bem através da escrita. Muitos apreciam a internet por dar-lhes a possibilidade de evitarem incômodos sensoriais enquanto que, pessoalmente, podem apresentar uma comunicação fragmentada devido a, quase sempre, fatores externos ou à ansiedade.
Acima de tudo, o respeito pelo esforço em comunicar-se deve ser reconhecido por todas as pessoas envolvidas com neste processo de evolução na comunicação da criança, jovem ou adulto autista.
*Fatima de Kwant é Especialista em Autismo e Comunicação Social na Holanda, onde vive desde 1985. Fatima é mãe de um jovem autista, e ativista internacional do autismo através do Projeto Autimates
Página brasileira do Facebook: Autimates Brasil
YouTube: Autimates Fatima de Kwant
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Se faz necessário o conhecimento para que possamos mediar as dificuldades de nossos alunos. O texto acima ajuda a ter esclarecimentos acerca do que realmente o autismo representa na vida de muita gente.
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Muito obrigada, Guiomar!
Abraços,
Fatima