Por Fatima de Kwant
Espanha, 11 de agosto, 2017
Existem momentos que ficam gravados na memória. Todo mundo se lembra do que fazia quando as Torres Gêmeas em Nova York foram destruídas, ou do primeiro beijo. Toda mãe de um autista clássico se lembra, claramente, do dia em que sua criança falou a tão esperada palavra, “mãe”.
O dia em que Edinho disse “mamãe” pela primeira vez, foi um desses momentos para os quais não há palavras suficientes que descrevam a felicidade sentida.
Era uma tarde tranquila de outono europeu. Lá fora, o vento sacudia as folhas do arborizado bairro onde vivemos até hoje, Westpolder, na cidade pitoresca de Papendrecht, na Holanda. Dentro de casa, a calefação mantinha a temperatura agradável fazendo com que não desse para perceber o frio que fazia fora dela.
Minhas duas filhas mais velhas estavam na escola. Edinho e eu lanchávamos na cozinha. Eu ainda comia meu boterham (sanduíche) enquanto Edinho já havia terminado e estava pronto para mais um treino comigo da terapia Son-Rise. Notando sua ansiedade, disse a ele, devagar e pausadamente como se fala com um bebê: “Mamãe vai terminar de comer o sanduíche e depois vamos treinar. “
Edinho me olhou nos olhos, sorrindo, e disse a palavra que eu nunca tinha escutado dele: “Mama” (mamãe, em holandês). O pedaço de pão que eu havia acabado de mastigar, ficou ali na minha boca, sem que eu o conseguisse engolir. Lágrimas de felicidade rolaram pelo meu rosto, enquanto o coração se aquecia de um calor tão intenso quanto agradável. Eu sabia que Edinho ainda não entendia as emoções e ficava confuso ao me ver chorar, mas eu me sentia muito feliz para não faze-lo.
Edinho tinha seis anos. Naquele dia, ele superou seu primeiro obstáculo em relação à linguagem. Foi o primeiro de muitos outros momentos felizes. Aos poucos, meu filho foi descobrindo mais palavras até que começou a falar em frases bem curtas, de duas ou três palavras.
Apesar de pouco correta, a linguagem foi aparecendo e progredindo, paulatinamente. Ainda precisávamos de algum esforço para entende-lo. Edinho ainda não articulava bem e desconhecia as preposições. Muitos não o compreendiam, nem mesmo na escola. Provavelmente, era esta a razão dele não falar muito fora de casa. Em casa não julgávamos sua linguagem, pelo contrário, elogiávamos seus esforços em querer falar. Estávamos muito felizes com a vontade dele querer se comunicar através da fala e o motivávamos o tempo todo. Passaram-se muitos anos até que Edinho se sentisse à vontade, falando com outras pessoas – na escola, na rua, nas lojas etc. Em casa, tudo ia de vento em popa e isso já nos bastava.
Expressar seus sentimentos através da palavra, também acelerou o progresso do seu comportamento geral. Os surtos, antes uma constante, foram diminuindo com o passar do tempo, até que acabaram por desaparecer. Edinho tinha descoberto o Poder da Palavra. Agora, era: “Edinho vai ou Edinho vai não”; “Edinho dormir ou Edinho dormir não”; “Edinho comer”, “Edinho banho” e “Isso”, apontando para um objeto que queria segurar ou algo que quisesse comer. Edinho estava fa-lan-do!
Anos se passaram até que meu menino conseguisse aperfeiçoar a linguagem. Apesar do desenvolvimento progressivo, principalmente no comportamento, sua habilidade para falar e interpretar textos não era tão rápida quanto nas demais áreas de aprendizagem.
No último ano do Primeiro Grau, Edinho venceu o Prêmio Nacional de Matemática da Holanda. Ainda com um pequeno vocabulário e a gramática comprometida, meu filho mostrava grande competência para as ciências exatas. Ele aprendia, principalmente, de um modo visual, lógico e exato.
No entanto, não desistíamos de aprimorar sua linguagem. Como podia ser que um menino tão esperto não conseguisse aprender a falar de um modo normal?
Em 2006, durante uma visita aos Estados Unidos*, descobrimos o que até então era uma charada. Edinho foi diagnosticado com um distúrbio específico de linguagem, até então pouco conhecido: Semantic Pragmatic Disorder. O Distúrbio Semântico Pragmático* (DSP) ainda é pouco conhecido, apesar da sua presença em vários casos de autismo. No do Edinho, o DSP era uma comorbidade ** só identificada aos seus quase 11 anos de idade.
Retornando à Holanda, procurei por fonoaudiólogos que pudessem tratar meu filho adequadamente. Infelizmente, na época, não encontrei ninguém. Com a ajuda da literatura escrita por uma profissional inglesa, que havia identificado o distúrbio já em 1983 (!), fui descobrindo um modo de ajudar o Edinho a compreender e usar a linguagem de um modo adequado, durante nossos treinos.
Finalmente, ao entrar para o ensino médio, numa escola especializada em problemas de Comunicação e Linguagem, Edinho alçou vôo. Usando uma metodologia específica e direcionada para adolescentes com ou sem autismo, porém com sérios problemas de linguagem, Edinho melhorou em todos os aspectos. Não só seu vocabulário, linguagem e interpretação de texto melhoraram muito, mas, principalmente, a autoestima. Edinho falava e era compreendido. Tudo que qualquer ser humano merece.
Finalmente, a pérola começava a sair da ostra.

* Distúrbio Semântico Pragmático – Desenvolvimento anormal da linguagem e dificuldade nas relações sociais. É reconhecido no DSM-5 (Manual da Academia Americana de Psiquiatria) como Distúrbio (ou Transtorno) da Comunicação Social, que, por sua vez, faz parte do TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) que antes era reconhecido como Síndrome de Asperger ou Autismo de Alto Funcionamento.No meu livro, dedico um capítulo a esse distúrbio, ainda desconhecido por muitos especialistas no Brasil.
Leituras interessantes sobre o DSP: site da Dra. Elisabete Giusti
site da Psicologia.pt
** Comorbidade – Um segundo ou mais distúrbio ou doença, com características correlacionadas ao primeiro.
*Fatima de Kwant (Rio de Janeiro) é defensora internacional do autismo e escritora de textos relacionados ao TEA. Radicada na Holanda, desde 1985, criou o projeto Autimates, que dissemina informação e inspiração para pais de crianças autistas e profissionais da área da comunicação e de comportamento.
Facebook: página em Português Autimates Brasil
Página Internacional: Autimates
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Fatima querida! Sua escrita é linda! Acolhedora, explicativa e nos ensina tanto! Muito obrigada pelo trabalho que desenvolve para as famílias. Vi o Victor no Edinho. Não conhecia esse distúrbio! Nunca ouvi nenhum profissional falar dele em nenhum Congresso ou Simpósio de autismo que fui aqui. Temos excelentes profissionais, mais ainda sinto que se limitam ao desenvolverem suas aulas nesses encontros.
Os assuntos tem se repetido muito.
Saúde e Paz! Abraços Adriana.
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Oi Adriana querida!
Mil desculpas pelo atraso no feedback. Sou sozinha para fazer muita coisa e algo fica atrasado. perdão.
Muito obrigada, querida. Sim, ainda tem muita coisa a ser esclarecida no Brasil. O Distúrbio Semântico-Pragmático precisa ser aprendido e, eventualmente, identificado pelo profissional de fonoaudiologia. No Brasil, gosto e recomendo a Dra. Elisabete Giusti para explicar o DSP. Beijos!
Fatima