Holanda, 05 de dezembro, 2019
por Fatima de Kwant

Neste mês de novembro, muitos internautas se comoveram com a história de Jéssica, mãe de três filhos autistas, residente em Recife, depois de sua história ter sido reportada por vários sites conhecidos. Naquele mês, Jéssica saiu de casa com as três crianças e foi até a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) participar de uma audiência pública. Com os filhos, literalmente, debaixo do braço, Jéssica pegou o microfone e emocionou a plateia com seu discurso de improviso, mas muito comovente. Entre outras, a mãe declarou aos parlamentares que não podia cuidar de três filhos com deficiência com os R$ 212,00 mensais que recebe do Bolsa Família. A cada frase, arrancava mais aplausos de quem a ouvia, fascinados com tanta coragem e veracidade.
O discurso de Jéssica viralizou nas redes sociais e alcançou todas as comunidades de autismo no país. Logo após, foi formado um grupo de ajuda no whatsapp, e publicadas algumas reportagens com a sua história em vários blogs e jornais digitais. A realidade dessa mãe também alcançou o Instagram de usuários famosos como o Marcos Mion, artista e também pai de autista, recentemente também conhecido por seu trabalho voluntário com o autismo. O apresentador se impressionou com a notícia, e consultou sua assessoria: “Isso é mesmo verdade, Fatima? Vamos fazer alguma coisa?”, perguntou Mion. Nesse meio tempo, Jéssica já havia procurado por mim, conhecida pelas postagens no Instagram e Facebook dos casos de famílias de autistas em situações precárias.
A história abaixo é uma narrativa exclusiva para este site.
A vida da pernambucana, Jéssica, já começou difícil. Durante sua infância e adolescência sofreu bastante e suportou situações de humilhação e descaso. Sonhando com uma vida em família estável, Jéssica se casou e logo teve o primeiro filho dos três filhos: Daniel (8), Eduardo (5) e Davi (3).
Diagnósticos
Daniel tem TEA (Transtorno do Espectro do Autismo) leve, TOD (Transtorno Opositor Desafiador), TDHA (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e a probabilidade de Altas Habilidades. Eduardo tem TEA leve, TOD e TDHA e a probabilidade do X-frágil. Davi tem TEA moderado. “Eles só têm o diagnóstico do neuropediatra e aqui não dá direito a nada, nem ao cartão de livre acesso a transporte, nem serve para o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Exigem dois laudos e o do psiquiatra, mas o psiquiatra demora cerca de dois anos.”

Daniel, o primogênito
O nascimento do primeiro filho, Daniel, hoje com 8 anos, não facilitou a vida da Jéssica. Já na gravidez trabalhou muito, vendendo livros infantis na cidade, mas o dinheiro nunca era o suficiente, e não sobrava muito para comer. O bebê nasceu após complicações no parto, e aos 20 dias de vida já precisou passar por uma cirurgia no estômago. Em seguida pareceu se desenvolver bem. Para surpresa de Jéssica, Daniel já falava aos 8 meses de idade. Nesse período, com o desejo de ter uma vida melhor, Jéssica se mudou para o Rio de Janeiro. A experiência não foi boa, e depois de passar por muitos problemas acabou voltando à Recife com o filho, indo viver com parentes que a sustentam até hoje.
Por volta de 1 ano e meio, Daniel apresentava bastante sinais de autismo, mas Jéssica não sabia. O menino já falava um pouco de inglês, conhecia os números, alinhava brinquedos por tamanho e cores, não brincava com ninguém, não gostava de sair de casa, abafava os ouvidos com as mãos, e empurrava as pessoas quando precisava ficar em fila, dizendo que quem estivesse na sua frente estaria “ganhando” dele. Desconfiando do comportamento, Jéssica conseguiu ir a um psicólogo, mas este a informou que o Daniel era normal, e que por ser filho único, aquilo era “manha de criança mimada“. Um dia, Daniel a ameaçou com uma faca, e começou a mostrar sinais de agressividade. Foi quando Jéssica buscou ajuda em um CAPS (Centro de Assistência Psicossocial): “…Foi pior”, diz. “Eles fizeram uma triagem e quatro atendimentos, chegaram à conclusão que meu filho tinha facilidade para aprender, que a agressividade dele não era motivo para desespero mas que eu procurasse um psicólogo pois, quando crescesse, podia me matar.” No entanto, o Caps afirmou que lá haviam crianças “piores”, e Daniel não tinha perfil para ser atendido neste centro: “Aqui no Caps não podemos acolher uma criança que não está se automutilando ou que nunca tentou o suicídio“, foi o que ouviu. Desanimada, Jéssica voltou para casa ainda com muitas dúvidas e ainda mais insegurança.
Agressividade
A agressividade de Daniel aumentou com o nascimento do irmão do meio, Eduardo, e Jéssica, mais uma vez, foi buscar ajuda. Dessa vez ouviu que o primogênito era muito inteligente, que ela deveria “usar isso a seu favor”, e foi dispensada. A ela só restava dar amor e tentar que Daniel não se sentisse excluído, pois todos o criticavam por ser questionador: “Ele nunca aceitou meias respostas”, diz Jéssica. “Uma vez me perguntou o que era um arquiteto. Eu disse que era um homem que fazia desenho de prédios. Ele falou: ‘Mãe, desenhista eu sei o que é. Eu quero saber é o que é arquiteto.’”
Jéssica desabafa: ” O Daniel tem TEA, TOD e TDHA. Não está sendo atendido em nenhuma unidade. Cheguei a passar dois anos esperando um psicólogo no SUS (Sistema Único de Saúde). Quando por fim consegui, saía de casa às 5:00 com meus 3 filhos para apenas 1 ser atendido. Uma psicóloga atendia Daniel com mais duas outras crianças por somente 10 minutos. Quando fui questionar, ela disse que eram muitas crianças para atender.”
Exclusão
Jéssica tem algumas queixas, entre outras, de que o transporte escolar inclusivo serve parcialmente, já que foi cedido somente para dois filhos e as crianças são deixadas na escola meia hora depois da aula começar e trazidas à casa uma hora e quarenta minutos (1:40) antes do final de turno, perdendo bastante tempo de aula. Além disso, dois dos filhos estão na escola municipal, porém, sem acompanhante. Davi, o caçula, está na creche, mas não tem profissional especializado. Jéssica descobriu que essa profissional não tem especialidade e só auxilia na higiene e na comida. Na parte pedagógica, nenhum apoio é dado ao filho.
Outra decepção é quanto às possibilidades não estimuladas pela escola do filho mais velho. “Daniel sofria muito. Tinha um sonho desde os 5 anos que era o de ser designer de games, fazer robótica, e nada disso era levado em conta quando eu falava na escola que ele gostava de matemática. Ninguém me ouvia quando eu dizia o que ele gostava de fazer e que seria bacana para despertar o interesse dele”, diz a mãe, triste com a lembrança.

Eduardo, o filho do meio
Com a chegada do segundo filho, Eduardo (5 anos), o comportamento de Daniel piorou. Eduardo nasceu quando Jéssica se separava de seu marido, que partiu levando os pertences e, inclusive, o tablet do qual o filho mais velho tanto gostava. Quando bebê, nunca apresentou atraso no desenvolvimento mas, segundo a mãe, não tinha reação quando alguém o chamava, não comia bem e não conseguia fazer nada. Dependia da mãe para tudo, como comer, se limpar, e se vestir. “Não aprendia, na escola só ficava se movendo de um lado para o outro”, conta Jéssica. “Chorava e ficava sorrindo sem motivos aparentes. Eu achava que não era nada demais.”
Davi, o caçula
“Quando meu Davi nasceu, fui eu que descobri o autismo”. O pequeno Davi foi diagnosticado com dois anos, com autismo no grau moderado. Há um ano, Jéssica dava entrada no BPC após receber o laudo de um neuropediatra e de um psiquiatra. Até hoje, o benefício não foi liberado. Com esforço, Jéssica conseguiu o cartão de livre acesso para transporte público. Apesar de todas as dificuldades e do descaso do poder público, Jéssica nunca esmoreceu e seguiu adiante na busca por melhores condições para os três meninos. Segundo ela, Davi tem muita sensibilidade sensorial, o que dificulta bastante sua presença em ambientes com muito barulho, e muita seletividade alimentar, que são típicos do TEA.

A vida dos quatro é bastante sofrida. Apesar do amor que os une, as dificuldades encontradas são um grande desafio. A casa onde a mãe e as crianças moram, fica nos fundos de uma moradia de parentes, onde anteriormente era um quintal. Com a derrubada de uma casa ao lado da sua, a situação piorou pois começaram a aparecer escorpiões e “gabirus” (ratos grandes), cuja urina pode envenenar seres humanos. Os problemas de infiltração, da parte elétrica e hidráulica do local também é uma ameaça à saúde das crianças.
Contudo, Jéssica diz estar muito grata à mobilização de mães de autistas e pessoas que apareceram na sua casa para ajudar de alguma forma, como um grupo de estudantes que vai disponibilizar uma luz que brilhe à noite, no escuro, para facilitar a visão dos escorpiões. As também mães, Viviane Gusmão, Polly Fittipaldi, Janine Bezerra e Bruna Priscila, entre muitas outras, se uniram para realizar um auxílio estruturado para Jéssica, tal que ela possa morar num lugar mais saudável para seus filhos crescerem, e conseguir tratamento para os três filhos. “…porque um salário só dá para custear um autista. Eu tenho três autistas e muitos gastos que não dá para cobrir tudo o que é preciso para eles.”
Para ajudar a Jéssica e seus filhos diretamente, o grupo de mães solidárias criou uma vakinha que você pode acessar AQUI para contribuir.
As Jéssicas do Brasil pedem socorro
Jéssica sabe que não é exceção numa sociedade ainda carente de políticas públicas para os autistas. Assim com ela, milhares de mães (e alguns pais) enfrentam situações parecidas, bem precárias, onde só conseguem sobreviver às custas de ajuda de pessoas que se sensibilizam com suas histórias.
O autismo no Brasil pede socorro já há várias décadas, e apesar da existência de leis que concedem direitos aos autistas – Lei Berenice Piana nr. 12.764/12 e Lei Brasileira de Inclusão (LBI) nr. 13.146/15 – sua execução deixa a desejar, o que torna as pessoas autistas e sua famílias, mais do que nunca vulneráveis à falta de tratamento e de inclusão, essenciais para que tenham alguma qualidade de vida.
Desejo de uma mãe
O poder público tem a chance de amparar essa família. Promessas já foram feitas em nota apresentada em programas de tv do local, como as de Jéssica obter prioridade na ocupação de um projeto habitacional, e de ser incluída na lista para receber cêstas básicas. No entanto, até agora nada foi feito. Jéssica e os filhos aguardam, ansiosamente pelos benefícios prometidos.
Por isso, o Autimates dá a última palavra à própria Jéssica que, melhor do que ninguém, sabe muito bem o que precisa.
“O meu grande desejo é que o Presidente do Brasil olhe com atenção para as crianças, jovens e adultos autistas. Vemos privilégios parlamentares, altos salários no congresso. Vemos cortes na Saúde e na Educação. Aí falam palavras bonitas como ‘amor’ e ‘esperança’. Como? As famílias do autismo têm um sonho, pois mães têm que largar suas funções para cuidar exclusivamente de seus filhos. Quanto têm companheiros, eles têm que largar seus empregos para comprovar miserabilidade para conseguir o BPC, que devia ser vitalício. Mulheres estão sendo largadas por seus companheiros, sofrendo com o abandono de parentes, principalmente, com o preconceito da população e com a falta de respeito com leis que não estão sendo cumpridas.
“Como fazer uma intervenção precoce se consultas demoram cerca de dois anos no SUS?”
Jéssica Renata
Tem pessoas que fazem o maior sacrifício de tirar um trocado do salário minimo para pagar um plano de saúde. Esses planos estão negligenciando atendimentos e obrigam as pessoas a abrirem processos demorados que acabam interferindo na vida desses autistas. Responsáveis por crianças, jovens e adultos autistas estão ficando doentes pois para conseguir tudo é muita burocracia, porque exigem muitos laudos, que só duram 6 meses. Os Caps não têm capacidade para atender autistas, são muitas deficiências no mesmo lugar. Na lei fala que ele tem direitos a atendimento multidisciplinar mas isso não acontece. Precisamos de um Centro de Referência de Autismo, de profissionais de qualidade, capacitados para receber os autistas com empatia e respeito, e o símbolo do autismo tem que ter em todos os lugares. As escolas particulares cobram mais caro quando a criança é autista, e as públicas colocam pessoas como babás. Falta tudo nas escolas. A maioria das famílias mora de favor e as contas são pagas pelos parentes, vizinhos e amigos porque um salário mínimo só dá pra custear (com dificuldade) os gastos com uma criança autista. Tem que ser mais e tem que ter BPC vitalício. Vivemos no país onde ser diferente é inaceitável por muitos e assim é determinado um mundo do autismo onde se formam associações não governamentais para nos ajudar. Essas, sim, são pessoas preciosas, ajudando com poucos recursos, dando atenção às familias, e buscando garantias e direitos.”
Jéssica Renata da Silva

*Fatima de Kwant é jornalista, radicada na Holanda desde 1985. Mãe de um autista adulto, ativista internacional do autismo, especialista em Autismo & Desenvolvimento, Especialista em Autismo & Comunicação e Criadora do Projeto Autimates.
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