Por Fatima de Kwant
Holanda, 15-03-2017
Há três anos, eu redigia uma carta para o governo brasileiro a pedido de alguns amigos ativistas pelo autismo. A carta, levada à então Presidente da República, Dilma Roussef, era intitulada “Os Autistas do Brasil pedem Socorro.” O texto era meu, mas o título foi indicado pelos amigos do Movimento Orgulho Autista do Brasil, mas especificamente uma das patronas da lei 12.674, Berenice Piana.
Lembro ter aconselhado minha amiga a mudar o título, sendo este um tanto piegas. Apesar de concordar, Berenice insistiu nele pelo fato do autismo no Brasil estar enfrentando, naquele momento, uma situação periclitante. Segundo ela, uma chamada forte seria o mais indicado.
Depois disso, muita coisa aconteceu. A Lei 12.764/12 foi regulamentada pelo decreto 8368 de 2 de dezembro de 2014, contendo no seu Artigo 2º – Alínea “C” para o descontentamento dos seus patronos e de todos os ativistas envolvidos. Esta medida deu margem às escolas negarem matrículas às crianças autistas e a de qualificar e fortalecer os CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) nos cuidados dos autistas. Ao contrário do que esta simples medida aparenta, tais redes de atenção psicossocial não estão habilitadas a fazer diagnósticos, não oferecem estimulação precoce, e não tratam os autistas de acordo com suas necessidades específicas. Sem menosprezar o trabalho dos funcionários destes centros, é preciso esclarecer que foram preparados para receberem usuários com transtornos mentais graves e persistentes, pacientes com esquizofrenia e/ou transtornos mentais em geral, como também os pacientes viciados em álcool ou drogas, sem estrutura para atender e tratar da pessoa autista. Simplesmente não é possível misturar autistas com pacientes com perturbações mentais graves (o que nada tem a ver com preconceito à doença mental mas com a intenção primária de beneficiar o desenvolvimento da pessoa autista.)
Além do mais, a regulamentação da lei foi assinada sem a presença de seus patronos, ocorrência inadmissível que deixou muitas pessoas ponderando sobre a razão de tal ação. Fato é que, após três anos, a lei existe, está sancionada, mas não é reconhecida na prática.
Em outras palavras: os autistas do Brasil ainda pedem socorro.
De longe, de uma Holanda florida e cercada pela natureza, me alegro com tudo de bom que tem acontecido para o autismo brasileiro nestes últimos tempos:
- A atenção da mídia
- O surgimento de profissionais capacitados
- Os grupos e blogs de autoajuda
- As várias palestras sobre o tema, em todos os estados
- O empoderamento de pais
- O empoderamento de autistas Aspergers e de alto Funcionamento
- “Sessões Azuis” – sessões de cinema adaptadas para a criança autista
- As ações comunitárias pró autismo
- Maior compreensão geral sobre o autismo e suas diferenças – leve, moderado e severo.
No entanto, ainda me surpreendo com tudo o que não aconteceu, e que deveria ter acontecido, para garantir os direitos de tantas crianças, adolescentes e adultos com autismo:
- Incentivo à Educação Especial
- Inclusão Efetiva
- Cadastro Nacional
- Moradias Assistidas
- União das comunidades
Incentivo à Educação Especial
A Educação Especial no Brasil tem, injustamente, má fama. Não existe um país desenvolvido onde não haja este tipo de Ensino onde profissionais capacitados para lidar e ensinar a criança autista, vão prepará-la para, talvez, atenderem a Educação Inclusiva/Regular num momento mais propício.
A confusão se dá quando pais, em sua maioria, acreditam que a escola especial será a única possível em toda a trajetória de seus filhos. Na verdade, os pais deveriam encarar o Ensino Especial como um trunfo; a possibilidade da criança ter espaço, tempo e mais atenção do que a escola regular para aprender.
Crianças autistas que ainda não entraram na fase da imitação não irão imitar os coleguinhas. É o mito da socialização forçada.
Uma escola especial, com profissionais preparados, saberá identificar a fase de desenvolvimento que o autista está passando, e fará as adaptações necessárias, inclusive, a de indicar a seus pais a hora de matricularem a criança numa escola inclusiva.
Inclusão Escolar Efetiva
Chamo de Inclusão Escolar Efetiva a inclusão que faz efeito, que ajuda o autista a aprender, não somente a ser tolerado na escola. Permitir que uma criança acompanhe a classe sem nada aprender, é subestimar sua capacidade de aprendizado. O autista se desenvolve para o resto da vida, um processo que nunca para. O que ele não sabe, agora, poderá saber dali a um ano ou mais. Porém, se ele está sempre numa classe regular, onde só recebe cadernos para pintar enquanto os coleguinhas aprendem a somar, talvez esta oportunidade de aprendizado seja ainda mais adiada, ou totalmente negada.
Inclusão é mais do que aceitação no mesmo espaço. Inclusão Efetiva é fornecer à criança autista as mesmas chances que as crianças neurotípicas, com ferramentas apropriadas a nivelar ambos os grupos.
Cadastro Nacional de Autismo
Um Cadastro Nacional de Autismo não somente facilita a vida de uma pessoa autista, na prática, como tem a finalidade de melhorar, a longo prazo, a criação de medidas públicas que proporcionem uma melhor qualidade de vida para os autistas e suas famílias.
O registro de todos os autistas brasileiros num só órgão, revela a necessidade existente de serviços apropriados para as pessoas autistas, em todas as cidades do país.
Através da computação do número de cidadãos autistas, assim como da análise da situação anual dos indivíduos diagnosticados, o cadastro vai funcionar como um instrumento de medida e, igualmente, acompanhar o progresso de cada cidadão autista, nas suas diferentes fases de vida.
Entre outras vantagens, o Cadastro coleciona dados, em forma de pontuação, sobre:
– As características de cada autista (estado civil, etnicidade, QI, desenvolvimento da linguagem, coordena ção motora e a independência na higiene)
– Dados da família
– Diagnóstico (idade no diagnóstico, local, se há comorbidades)
– Tratamento e Acompanhamento (terapias seguidas, medicação, assistência)
– Moradia (se mora sozinho, com os pais, numa instituição, ou outro local)
– Educação (Nível escolar, escola regular ou especial)
– Rotina diária (se trabalha, como passa o dia, se tem algum subsídio)
– Filiação a alguma Associação de Autismo
– Relação afetiva (Orientação sexual, se tem um parceiro/a ou não)
– Relações Sociais ( se está satisfeito quanto a seus contatos sociais, se tem mais ou menos necessidade de contatos sociais)
– Bem-estar em geral (Pontos fortes, participação na sociedade.)
Esta avaliação propicia os estudos sobre as características do autista que podem ser usadas a seu favor. O que é necessário para fazer com que participem da sociedade? Quais os fatores que influenciam seu bem-estar (tratamento e situação familiar)? Quais as diferenças entre os autistas masculinos e os femininos? Ou autistas de outras nacionalidades que vivem no Brasil? Qual o grau de satisfação do autista (ou seus responsáveis) pelo trajeto efetuado desde o diagnóstico (terapia, medicação, educação, contato social., moradia e tempo livre)?
O objetivo do cadastro não é somente o de registrar quantos autistas existem no país, mas também de revelar como é possível ajudá-los a progredir. Sendo seus dados acompanhados por bastante tempo, através de formulários anuais, é possível encontrar os instrumentos capazes de melhorar suas condições e qualidade de vida.
Uma vez por ano, pessoas com autismo ou seus pais respondem a um questionário online sobre a sua situação atual ou a de seus filhos. Os dados serão usados exclusivamente para pesquisas científicas e entidades públicas, que irão proteger a integridade e a privacidade dos autistas.
A iminência de um cadastro, que já comprovou seu sucesso em outros países, é grande. O cuidado com a preservação de tais dados são igualmente de bastante importância. É imperativo que o cadastro seja criado e executado pelas politicas públicas, tal que haja uniformidade e consistência em todo o processo, acarretando no benefício para a pessoa autista. Iniciativas particulares deveriam ser desencorajadas.
Na Holanda este Cadastro já existe e foi criado pela única Associação de grande porte, a Associação Holandesa de Autismo, em parceria com a Universidade Nacional de Amsterdã, com o apoio e subsídios da Secretaria do Deficiente.
Moradias Assistidas
Onde irão morar os autistas adultos quando seus pais não mais viverem?
Uma pergunta que não abala algumas famílias grandes ou melhor estruturadas. Porém, é o pesadelo constante de famílias pequenas, de algumas de mães solteiras com um filho ou filha autista, que não têm com quem contar em caso de emergência.
A Holanda é pioneira nas Moradias Assistidas, locais onde os autistas maiores de 18 anos podem viver: morar, estudar, executar atividades e receber tratamento, se for o caso.
Outro mito espalhado no Brasil: as Moradias Assistidas são locais onde pais “depositariam” seus filhos. Nada está mais longe da realidade. A Moradia Assistida é um projeto nascido do amor e da preocupação de pais de autistas e de um governo consciente, protetor dos direitos de todos seus cidadãos.
Mais leitura sobre Moradias Assistidas aqui.
União das Comunidades
Nós, os holandeses, somos práticos; no nonsense como os americanos costumam dizer.
A Holanda construiu sua terra, montando diques e abrindo caminhos. A História não tem glamour mas, sim, sucesso. O segredo deste país – pequeno em extensão, mas enorme em cultura e pragmatismo – é não perder tempo com discussões e egos em conflito. Se é preciso ser feito alguma coisa para o bem da nação, será feito e não importa quem o fez.
Seguindo esta linha, temos aqui uma grande Associação de Autismo, a NVA, que tem feito um trabalho memorável para a história da pessoa autista desde 1978.
Pessoas anônimas, pais, profissionais, autistas e voluntários tornam possível e realizadas as necessidades de toda a comunidade autista, considerando suas diferenças e gradações de autismo. Novamente, com o foco no bem de todos. Divergências são democraticamente resolvidas, como é de praxe neste sistema liberal-democrático com uma forte tendência social.
Comunidades brasileiras devem unir-se e encontrar representantes em todas suas manifestações: autistas, pais de autistas, irmãos de autistas, profissionais da Educação, da Saúde (Física e Mental), terapeutas atuando voluntariamente, em favor de um bem maior.
“As rixas precisam terminar. A ação tem que dar lugar às palavras.”
Refiro-me não somente a de vestir-se de azul no dia 2 de abril (dia internacional do autismo) e fazer um carnaval desta data, mas, principalmente, a presenciar ou pronunciar-se numa audiência pública, por exemplo. Agir em prol do autismo é cobrar do vereador que pediu seu voto as promessas que ele fez. É fazer um pouco mais do que somente reclamar, arregaçar as mangas e lutar por seus direitos ou pelo do próximo que não tem condições de lutar pelas dele.
O próximo
Você se importa somente com o seu filho? Ou o problema dos outros autistas também são importantes para você?
Sempre conto o motivo de ter iniciado meu trabalho pelo autismo. Entre outras, porque eu não queria viver num mundo que pensasse que meu filho era doido, e não queria que pensassem que o filho autista de outras pessoas fossem doidos. Quero, sim, viver num mundo onde o desafio alheio também é considerado.
Os autistas do Brasil pedem socorro porque:
- A maioria das cidades não têm centros de tratamento do autismo
- Muitas cidades do interior não têm profissionais capacitados para cuidar de uma criança autista
- Mais pais do que se imagina, precisam amarrar seus filhos ao pé da mesa para poderem trabalhar
- Autistas severos adultos, sem tratamento, são drogados ou colocados em centro de autismo onde eu não colocaria o meu cachorro
- Grande parte das crianças autistas não consegue matrícula escolar
- Muitos pais não podem trabalhar fora para cuidarem de seus filhos autistas, mas também não recebem subsídios além do Loas (somente para a criança).
- Os Caps (Centros de Assistência Psicossocial) não estão especializados em autismo
- Verbas que algumas associações recebem para cuidar dos autistas são desviadas
- Profissionais capacitados cobram quantias absurdas para consultarem crianças/pessoas autistas, tornando o tratamento impossível para as famílias sem condições financeiras
O autista não é um pobre coitado, mas precisa de ajuda. As pessoas autistas e suas famílias necessitam do apoio da sociedade. Um diagnóstico não define o futuro de um autista, mas o meio onde ela vive e aprende, sim.
Fatima de Kwant – Coordenadora Moab Europa
Coordenadores do Moab – Movimento Orgulho Autista do Brasil – www.orgulhoautista.org
Presidente: Fernando Cotta
Vice-presidente: Tatiana Lima
Patronos da Lei 12.764/12: Ulisses da Costa Batista e Berenice Piana
Coordenadores Estaduais: Claudia Moraes/RJ, Adriana Zink/SP, Ronaldo Cruz/RN, Dayse Lima/MG, Pollyana Paraguassu/ES, Alessandra Rose/GO, Nilton Salvador/PR, Dibson Flores/AM
Coordenadores Municipais: Ana Paula Ferrari: Goiânia/GO, José Muniz: Niterói/RJ, Sandra Tadini: Barretos/SP, Josy Silva: Contagem/MG, Athayleila Lira: Uberlância/MG, Liê Ribeiro: Volta Redonda/RJ, Mell Batista: Ceilandia/DF, Rochele Elias: Natal/RN, Priscilla Martins: Pirenópolis/GO, Ana Paula Chacur: Santos/SP, Eliane Policiano: Barra Mansa/RJ, Bruna Priscilla: Parnamirin/RN, Andrea Lungwitz: Sorocaba/SP, Katia Raquel: Jundiaí/SP, Tamires Umbelino: Matupá/MT, Anita Smalti: Bento Gonçalves/RS, Rosangela Soares: Campinas/SP, Gilberto Sebrão/ Florianópolis/SC, Mila Ferreira: São Gonçalo/RJ, Patricia Rodrigues: Queimados/RJ, Julio Cesar:Resende/RJ
*Fatima de Kwant é jornalista, especialista em Autismo & Comunicação Social e mãe de um rapaz autista. Através do Projeto Autimates, promove a Conscientização do Autismo da Holanda, onde reside desde 1985, ao mundo.
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Estou com vcs como faço para ajudar
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Iara Maria,
Envie um e-mail para o autimates@gmail.com e
confirme que deseja ser coordenadora municipal do Moab.
Coloque seu nome completo e a cidade onde vive.
Eu te envio, por lá, as informações do que é necessário para ser coordenadora do Movimento Orgulho Autista do Brasil.
Se quiser, entre no site do Moab para ter uma ideia:
http://www.orgulhoautista.com
Obrigada <3
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Realmente os nossos autistas precisam de ajuda.
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Obrigada pelo feedback, Lúcia. Os autistas precisam ainda de muita ajuda, sim.
Beijinhos,
Fatima
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Parabéns e obrigada pelas informações. Concordo com vocês e também me preocupo com esta questão. Tenho alguns primos autistas e após a morte dos pais, vivem com os irmãos. Peço a Deus qque torne minha filha capacitada e humana para cuidar de seu irmão.
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Obrigada pelo cometário, Luiza. Espero que seus primos e sua filha tenham muito carinho com os autistas de sua família, sempre.
Um abraço com carinho,
Fatima
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Parabéns pelo texto!
Fico aliviada quando vejo que existe uma luta que só cresce em relação ao autismo. Mas percebo que as iniciativas partem de pessoas que têm um autista na família, não de um Governo. Quando vou repassar as mensagens do assunto, preciso selecionar quem está nas mesmas condições pois outros próximos afetivamente ou familiar não estão envolvidos na dinâmica das nossas necessidades e, portanto, permanecem sem as informações que podem ajudar aproximando mais de soluções.
Sugiro que este texto, como os demais, tão esclarecedores quanto, venham a ser publicados de forma direta em canais governamentais criados para fins sociais e nas grandes mídias e possam alcançar as comunidades em geral.
O que desanima é ter que aguardar a boa vontade de um governante que se interesse e lute pela causa, sem necessariamente precisar ter um autista na família para atuar conosco. Mas é assim mesmo que vamos avançando com a sensibilidade e a força de quem sabe os caminhos e pode fazer valer os direitos dos Autistas. Já são Grupos e mobilizações espalhados por todo o mundo.E que venham mais.
Salve 02/04, Dia da Conscientização dos Direitos dos Autistas.
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Olá Selma, muito obrigada pelo seu comentário, cheio de ótimas sugestões.
Enquanto houver disposição para lutar,os autistas não serão esquecidos apesar de tudo.
Um grande abraço,
Fatima